quarta-feira, 2 de janeiro de 2019

A dureza dos corações


A dureza dos corações


Mateus, 19:1-9
Marcos, 10:1-12

    Ao tempo de Jesus, desde longa data, vigorava entre os judeus a poligamia. Detalhe machista, típico a época: beneficiava os homens. As mulheres, nem pensar!
    Os grandes líderes da raça, dentre eles David e Salomão, tiveram várias esposas e incontáveis concubinas.
    Consta que Salomão montou um harém particular com perto de mil mulheres para servi-lo. Um prodígio de virilidade! Em rodízio diário, levaria perto de três anos para, segundo o eufemismo bíblico, "conhecê-las".
    Eram tempos difíceis para a mulher. Não passava de escrava do homem, objeto de seus desejos... Seu amo e senhor podia livrar-se dela quando bem entendesse. Bastava entregar-lhe uma carta de divórcio e pronto – a união estava desfeita.
    Lembrando uma regra do futebol, mostrava-lhe o cartão vermelho. Era como um patrão demitindo a empregada. E nada de indenização por direitos adquiridos, fundo de garantia, férias, dedicação em tempo integral...
    Imaginamos a esposa, a indagar, aflita:
    – O que fiz de errado? Onde falhei?
    E o marido:
    – Cansei de sua comida. Além do mais, com cinquenta anos você está ficando passada. Resolvi trocá-la por duas de vinte e cinco...
***
    A questão do divórcio foi abordada por Jesus na Peréia, respondendo às indagações maliciosas dos fariseus.
    Como sempre, procurando comprometê-lo, abordando temas polêmicos, perguntaram-lhe, diante da multidão:

    – É lícito a um homem repudiar sua mulher por qualquer motivo?

    A lei mosaica facultava o repudio.
    Iria Jesus, condescendente com as mulheres, contrariar as escrituras?
    Como sempre, o Mestre saiu-se com sabedoria, aproveitando o ensejo para oferecer uma nova visão sobre o casamento:

    – Não tendes lido que o Criador desde o princípio os fez homem e mulher e disse:
    "Por esta razão o homem deixará seu pai e sua mãe e se unirá à sua mulher, e os dois se tornarão uma só carne?"
Assim, já não são dois, mas uma só carne. Portanto, o que Deus ajuntou não o separe o homem.
    Questionam os fariseus:
    – Por que, então, mandou Moisés dar carta de divórcio e repudiar a mulher?
    – Por causa da dureza do vosso coração é que Moisés vos permitiu repudiar vossas mulheres, mas não foi assim desde o princípio. Eu, porém, vos digo que aquele que repudiar sua mulher, a não ser por infidelidade, e casar com outra, comete adultério...

    Jesus eleva o casamento ao status de compromisso perante Deus. Não pode, portanto, subordinar-se aos caprichos masculinos.
    Os fariseus contestam, lembrando a autorização de Moisés, ao que Jesus enfatiza que foi por causa da dureza do coração humano.
    Essa insensibilidade sustentava um costume tão arraigado, que Moisés não pôde ou não achou conveniente mudar. A carta de divórcio era o mal menor. Representava um avanço no relacionamento conjugal. Legalizava a situação da mulher repudiada, dando-lhe a chance de nova união.
    Entretanto, diz Jesus que no princípio não era assim. Nas tradições mais antigas envolvendo o Velho Testamento, não se observa a utilização frequente da carta de divórcio.
***
    Jesus deixa bem claro que o casamento é compromisso para a vida toda.
    Admissível a separação apenas numa circunstância: o adultério, quando o respeito e a confiança, fatores indispensáveis à vida familiar, são gravemente comprometidos.
    Não obstante, não o situa como regra inamovível.
    É possível preservar o lar, se o cônjuge traído se dispõe a exercitar a tolerância e o perdão em favor dos filhos.
    Fundamental, nessa situação, avaliar a relação custo e benefício.
    Valerá a pena desfazer uma ligação, estabelecer uma modificação radical, por causa de uma defecção do cônjuge? E os filhos, como ficam? Quando Jesus diz que devemos perdoar sempre, não se refere, também, a essa situação?
    Jovem senhora, de elevados dotes morais, experimentou imensa decepção quando o marido engraçou-se com outra mulher.
    Não obstante, não pediu a separação. E explicava:
    – Há ocasiões em que o esposo deve ser encarado como um filho rebelde. Assim estou fazendo, a fim de preservar a família e não causar um dano maior aos nossos filhos.
    Para o homem comum, uma tola, sangue de barata.
    Para Deus, uma heroína.
***
    A Doutrina Espírita ratifica o pensamento de Jesus sobre o casamento e até nos oferece subsídios valiosos em favor da preservação do lar.
    Mostra-nos que a união matrimonial não é obra do acaso e envolve compromissos assumidos na Espiritualidade, antes da reencarnação. No lar reúnem-se afeiçoados e desafetos do passado, a fim de consolidar afeições e desfazer aversões, ensaiando fraternidade.
    Assim, reencontramos no reduto familiar:
    O verdugo que devemos perdoar...
    A vítima que deve nos perdoar...
    O inimigo que vem para a reconciliação...
    O ente querido que retorna ao nosso convívio...
    O companheiro em quem nos apoiamos...
    O irmão que devemos amparar...
    O mentor que nos orienta...
    Ressurgem na condição de filhos, cônjuge, pais, irmãos, personagens que participam de nossa história milenar, em reencontros marcados.
***
    A família representa, acima de tudo, a oportunidade de melhorarmos a própria vida, refazendo-a em termos de resgate do passado e semeadura de bênçãos para o futuro.
    Se fracassarmos, simplesmente repetiremos as experiências, alunos indisciplinados que retornam à escola para aprender lições não assimiladas, sujeitos aos corretivos drásticos da Dor, essa mestra inflexível dos aprendizes recalcitrantes.
    Como princípio, portanto, com base no Evangelho e na Doutrina Espírita, podemos afirmar que o casamento deve ser indissolúvel. É compromisso perante a própria consciência, uma tomada de posição diante da vida.
***

    Justamente porque a sustentação do casamento é um problema de consciência, será inútil instituir leis que o tornem indissolúvel, como acontecia no Brasil, antes do divórcio.
    A ideia de que o divórcio age contra a família é absolutamente infundada.
    Casar e descasar, unir e separar, nada tem a ver com as leis civis.
    O homem e a mulher unem-se porque se amam, se desejam, se entendem...
    Separam-se porque deixaram de se amar, de se desejar, de se entender...
    Imperioso que sustentemos a estabilidade do lar.
    A família é, talvez, o compromisso mais importante de nossa vida.
   Mas, negar àqueles que chegaram a extremos de incompatibilidade o direito de se separarem é um anacronismo.
   Ficaria bem no passado, mas não tem razão de ser no presente, quando o homem, ensaiando discernimento, não admite grilhões senão os impostos pela própria consciência.
    Esta, sim, e não a lei civil deve nos dizer que a porta casamento está aberta, mas não é conveniente sair.
    Para tanto nos compete envidar esforços por superar divergências e desentendimentos no lar.
    Jesus nos dá a fórmula perfeita de como podemos fazê-lo:
    Combater a dureza de nossos corações!


Richard Simonetti




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